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Negócio de morte na Quinta de Cima
[28/06/00 Fonte Jornal Nova Guarda]
Eduardo Marques Terminou em tragédia o relacionamento entre uma família de etnia cigana e um agricultor. Aquilo que começou com um negócio de casas, havia cerca de seis meses, saldou-se, no passado Sábado, dia 24, com dois mortos e dois feridos.

Dizem que o calor altera o humor das pessoas. Se assim é, aquilo que os ingleses designam por "silly season" (estação louca) voltou a deixar a sua marca. Já havia acontecido com zaragatas e tiroteio na Bismula e em Vilar Maior, nada que ver com este caso, mas, aquilo que foi realmente grave registou-se no lugar de Quinta de Cima, freguesia de Valongo do Côa, concelho do Sabugal.
Apesar dos acontecimentos trágicos se terem dado agora, vinham já de trás presumíveis desentendimentos entre o alegado homicida e a família cigana. Aliás, as casas que serviam de residência a estes últimos haviam sido vendidas por Eduardo Carvalho Marques (EM), pelo, que, no dizer de alguns populares "se previa que isto viesse a acontecer [...] ele meteu-os cá [...] era como se estivesse a brincar com o fogo".

Negócios confusos
Os negócios entre as partes não se ficaram só pelas moradias. Ultimamente terão envolvido cavalos e carros. Negócios feitos e desfeitos, com dinheiro pelo meio. Parece ter sido mesmo o negócio dos automóveis que criou "a gota de água que entornou o copo". Primeiro envolvendo a troca de um cavalo por "um R21 ou uma Toyota à troca de um cavalo", disse Leonor Monteiro, esposa de uma das vítimas, negócio que acabaria desfeito, e depois à troca de dinheiro. Comenta-se, também, que EM andaria bastante combalido devido a uma sova que lhe teria sido propiciada pelos ciganos, versão desmentida pelo filho que afirmou: "o meu pai caiu da égua, inventaram muita coisa por aí".

Mortandade
O local dos factos é um lugar próximo de Valongo, onde residiam 10 pessoas. Tudo terá começado pela manhã com uma discussão entre as partes. Era perto das 11 horas de sábado quando Eduardo Marques, casado, pai de quatro filhos menores, conhecido por "Manigolho" e também por "Javali", segundo populares, se envolveu numa disputa com a família cigana por causa dos atrás referidos negócios.
As ameaças mútuas viriam já de trás. Aliás, foi-nos comentado que EM ter-se-ia abastecido de "zagalotes" muito recentemente no Sabugal. Das ameaças e agressões verbais passou-se a "vias de facto" com um tiroteio que causou a morte a José Gomes, de 47 anos, Amadeu Gomes, seu filho de 11 anos, o primeiro abatido já quase na presença da GNR. Atingidos também foram dois outros indivíduos da mesma família, Cândido e José Monteiro Gomes, de 30 e 14 anos, respectivamente, tendo sido transportados para o Hospital da Guarda. O primeiro foi resgatado pela GNR com um tiro na cabeça e o segundo, com um tiro no abdómen, seria quem conseguiu fugir, dando o alarme no café da aldeia, desencadeando-se toda a operação policial.

Cenas de policial
Após os primeiros tiros Eduardo Marques, refugiou-se num lagar desactivado, controlando a habitação, onde se encontravam refugiados os restantes elementos da família cigana que, presumivelmente, queria abater. O alargado campo visual permitia-lhe controlar todos os movimentos; quer os da família cigana quer os dos agentes da GNR, o que lhe permitia fazer alguma pressão sobre os agentes "eu tenho armas, eu tenho balas, eu mato os guardas todos de uma só vez". Estas e outras afirmações demonstravam que EM não estava disposto a ceder facilmente. Para aumentar mais a tensão da operação afirmava que estava tinha consigo dois dos seus quatro filhos.
Entretanto, as horas iam passando e viviam-se momentos de angústia dentro da loja onde estavam os reféns e no exterior. A GNR, através dos Capitães António Almeida e Cunha Rasteiro, ia, com o megafone, conversando com EM que se mostrava intransigente, guardando a porta da loja. Enquanto isso, a GNR fazia uma abertura nas traseiras da loja, por onde retirava os reféns. Faltava confirmar a presença, ou não, das crianças junto do pai. Averiguado que EM estaria sozinho mudou o discurso da GNR e foi estabelecido um diálogo com a irmã, Esmeralda Marques, já com a presença de quatro elementos do Pelotão de Operações Especiais, da GNR, vindos de Lisboa, em helicóptero. Só perante a confirmação da irmã que a GNR tinha resgatado os reféns pela abertura feita nas traseiras da loja e, como tal, não estava ninguém, é que EM decidiu entregar-se, passadas quase onze horas.

Sem sinais de arrependimento
EM saiu de braços no ar e pediu para não ser algemado atrás das costas, devido ao seu estado de saúde. Quando era levado para a viatura explicava, à pergunta da irmã "eles ainda te bateram?", que um dos ciganos "deu-me dois tiros aqui, mas eu tinha a arma ali, ele fugiu por aqui acima... passado um bocado veio o filho com outra pistola, dei-lhe dois tiros aí... o filho disse-me "ó Eduardo não faças isso!" "e vós por que é que andais a fazer?" E entretanto dava mais pormenores sobre a "convivência"" com os seus vizinhos, referindo que já de outra vez "eles estavam com uma metralhadora numa malinha [...] e eu agarrei na caçadeira e meti-lhe dois zagalotes, com a ideia de os limpar, eu limpava-os ali, mas a minha mulher disse "ó homem não faças isso que vais desgraçar a vida". Sobre o tiroteio comentava "foram todos na rua [...] o Cândido puxou-se a ele, esse não levou porque ainda estava a cavilha, só apanhou assim na moca maneiras...". Sobre o negócio, parece coincidir com Leonor Monteiro, pelo menos nas viaturas, "Comprei-lhe dois carros, um Renault 21 e uma carrinha Toyota, a carrinha por 450 contos e o Renault 21 por 270 contos. Fui a Oliveira do Hospital a levantar o dinheiro, levantei 914 contos, ali diante deles, que não me largavam, deu-lhe 770 contos, porque vi que ficava mal na carrinha, porque o dono da carrinha disse-me que ele lhe tinha dado 600 contos, agarrei em mais 50 contos e dei-lhos dados. [...] Fomos almoçar, paguei-lhe o almoço. Nós fomos no dia atrás à noite e dormimos à porta da garagem onde ele tinha o Renault que disse que estava lá a compor. Afinal não estava lá, ele tinha batido com o Renault [...] e ele depois disse-me que tinha que lhe dar 250 contos.".

"O meu irmão fumou três cigarros"
A irmã do alegado homicida referiu que o irmão não estaria muito bem e talvez sob o efeito de drogas "o meu irmão fumou três cigarros, o meu irmão nunca fuma". Segundo a irmã EM estaria desesperado com tudo isto "eles pediram-lhe 500 contos e se não lhes desse diziam que lhe matavam os filhos [...] ele pelos filhos faz tudo".
A preocupação de EM era com as tesouras da poda que pedia ao filho para meter em óleo para não enferrujarem e com os animais, algumas dezenas, entre vacas, cavalos e burros.

Forte dispositivo policial
Foram muitas as viaturas presentes quer da GNR quer dos Bombeiros Voluntários do Soito e do Sabugal. Saliente-se, aliás, o excelente trabalho dos elementos da GNR que souberam resolver da melhor maneira a situação. EM está detido no Estabelecimento prisional da Guarda e seguem-se agora os trâmites judiciais.

"Mais dia menos dia ia haver algum acidente"
Para o presidente da Junta de Valongo, Alberto Monteiro, a desgraça adivinhava-se, mais tarde ou mais cedo. O autarca que foi inexcedível no apoio aos militares da GNR, aos Bombeiros e à Comunicação Social, recorde-se que houve agentes que às cinco horas da tarde ainda não tinham comido nada (almoço, é claro), enquadrou os factos com o conhecimento de quem lidava dia-a-dia com as partes: "previa-se isto já há algum tempo. Desde que eles se instalaram aqui na Quinta de Cima, mais dia menos dia ia haver algum acidente. Eu já tinha falado com o Eduardo que fizesse cuidado porque os ciganos são todos boa gente mas quando as coisas não correm para o lado deles, já se sabe como é." Salientou também a maneira de ser do alegado homicida "O Eduardo também o feitio dele, por vezes não é o melhor... e quando um não é bom e o outro não é melhor, pode haver um desacato entre as partes.". Referiu que lhe havia comentado o negócio dos carros "começaram com negócios [...] tinha ouvido falar que tinham feito um negócio de um carro, que depois desfizeram [...] um dia destes encontrei-o outra vez e disse-me 'já lhe comprei dois, dei-lhe dinheiro de sinal e destas vez não se negam', e eu disse-lhe para não se meter em histórias, cada um que andasse na sua vida [...] eu já tinha falado com os ciganos e disse-lhes que não tinha nada contra eles, mas se alguma coisa se passasse eu era o primeiro a avisar a GNR... mas não havia queixas, as quezílias eram entre eles.".
O presidente da Junta manifestava-se entristecido pelo facto de a freguesia ser falada por um acontecimento tão negativo. Ao que apurámos, e dado tratar-se de um negócio de carros, nenhum dos intervenientes teria a necessária licença de condução.

Morte marginal
O numeroso aparato policial motivado pelo caso acabaria por consequências marginais ao caso mas igualmente trágicas. Um rapaz de 13 anos, residente em Seixo do Côa, foi vítima de atropelamento por uma viatura da GNR, falecendo em consequência do acidente. Foi uma viatura ligeira que se deslocava para o lugar dos acontecimentos que colheu o pequeno Ricardo. O acidente ocorreu entre Valongo e o Seixo e as circunstâncias ainda não estão bem apuradas. Tratou-se, de facto, de um lamentável acidente que só ocorreu pelos motivos que se conhecem. O sucedido deixou os militares da GNR muito consternados e com pouca vontade de falar sobre o assunto. Apesar disso, tudo indica que terá sido uma manobra brusca da criança que seguia de bicicleta atrás do tractor, que transportava feno, conduzido pelo pai da vítima.
O tenente-coronel Virgílio Rodrigues, comandante do Grupo Territorial da GNR da Guarda, comentou o sucedido: "foi uma tragédia que lamentamos". Uma morte que entristece a freguesia, até porque são cada vez menos os novos nestas aldeias do interior.
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